quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

LOCOMOTIVAS - CAPÍTULO II - PARTE II


Enquanto dava as últimas ordens a Adelaide, Kiki pensava sobre o significado daquele jantar: "Milena continua firme em sua decisão de se afastar de Fábio e Fernanda ainda tem esperanças de conquistá-lo. Tanto que fez questão de que ele também fosse convidado. Na certa, deve estar armando algum truque para chamar a atenção dele. Só que nem ela nem Milena sabem das verdadeiras intenções do moço. Ele virá disposto a fazer tudo para recuperar Milena".
Decidiu ir conversar com ela. Encontrou-a no quarto, escovando os cabelos, quase sem maquilagem e vestindo uma roupa das mais comuns. Dessas que costumava usar durante o trabalho. Naquele momento, com um olhar quase profissional, Kiki avaliou a aparência da filha: parecia-se menos com ela do que com o pai. Havia mais de trinta anos não via o rosto daquele homem. Mas aqueles traços ficaram para sempre gravados em sua lembrança. Milena não poderia ser considerada uma beleza clássica. Não tinha, por outro lado, uma aparência moderna. Olhos grandes, boca rasgada, nariz amado, seu rosto era antes de mais nada original e, acima de tudo, muito agradável. Revelava quase todas as características positivas de sua personalidade: firmeza de caráter e honestidade. Mas não custava nada se enfeitar um pouco e ajudar a natureza.
- Milena... por que é que você não coloca um vestido mais alegre?
- Por que, mamãe? A gente tem alguma visita especial hoje?
Ela não sabia que Fábio estaria ali naquela noite. Se soubesse, nem teria ficado em casa. Era bem seu feitio: uma vez tomada a decisão, fazia de tudo para que ela fosse mantida. O único jeito agora era esconder um pouco a verdade.
- Não, filha, que eu saiba, não. É que as crianças convidaram alguns amigos e estão todas muito bem arrumadas. É bom a gente se embonecar de vez em quando. Você não acha?
- Sabe, mamãe, o Fábio não pára de me telefonar...

- Não diga... - Kiki fingiu que não sabia. Na verdade, o próprio Fábio tinha lhe contado sobre o esforço que vinha fazendo para tentar se entender com Milena. Esse jantar, aliás, tinha sido idéia dele.
- Eu não sei o que fazer mamãe...
- Pois eu sei... Agarre esse amor com unhas e dentes!
- E a Fernanda?
- Você está se preocupando demais com ela, ouve o que estou te dizendo. Ela é uma criança. Tem toda a vida pela frente. Tem tempo de sobra para se apaixo    nar mais de vinte vezes... E você?         
- Eu acredito que só se ama de verdade uma vez na vida, mamãe. E essa é a vez da Fernanda. Não posso fazer uma coisa dessas com minha própria filha. Ela vai me odiar para sempre!
- Que bobagem, daqui a uma semana ela esquece tudo...
- Eu me sinto tão culpada em relação a ela...
Kiki conhecia muito bem aquela espécie de culpa. Mas também sabia de tudo o que Milena fizera por Fernanda. Nunca se revelara como mãe da menina, sempre agira como tal, cuidando, aconselhando, amamentando, trocando fraldas, ajudando a fazer a lição de casa. Tudo o que as mães costumam fazer pelos filhos Milena fez por Fernanda. Só não lhe deu um pai. E isso era o que a fazia se sentir tão culpada. Essa fascinação por um homem mais velho só podia ser reflexo da infância que ela tivera. Só podia ser resultado da falta de uma figura paterna.
- Você sabe que não havia condições de contar a verdade. Você tinha apenas quinze anos quando ela nasceu. O certo seria ter revelado tudo logo de cara, quando ela começou a entender as coisas. Mas aí a gente não contou por culpaminha, lembra? Fui eu que não tive coragem...
- Eu também não tive...
- Vamos encarar a realidade, Milena. Fernanda não está apaixonada de verdade. Ela está apenas procurando um pai!

Fernanda passou o dia todo se preparando para aquele jantar. Não descuidou de nenhum detalhe. Pela manhã fez ginástica e tomou uma sauna seguida de massagem. Passou a tarde no instituto, onde cumpriu o ritual completo de embelezamento, Cuidou das unhas, dos pés, dos cabelos e da pele. Maquilou­se com o melhor profissional da casa e comprou uma roupa nova para a ocasião.Agora, em frente ao espelho, escolhia os brincos e sapatos que deveria usar no jantar.
Kiki tinha lhe avisado que não tentasse nenhum truque naquela noite. Mas o que ela ia fazer não poderia ser chamado de truque. Seria apenas um recurso milenar usado pelas mulheres que precisam despertar a atenção de um homem indiferente. Mesmo sem ter tido muita experiência com o sexo oposto, ela sabia, por tudo o que tinha visto nos filmes e lido nos romances, que o bicho homem é essencialmente competitivo. Nenhum homem fica indiferente quando vê o interesse de outros homens por determinada mulher. Quer logo saber o que é que ela tem de especial e quer se afirmar roubando-a dos outros e tomando-a só para si.
Em resumo, Fernanda planejava fazer ciúme para Fábio naquela noite. Não acreditava no que Milena dissera. Esse negócio de desistir do Fábio só podia mentira. Uma maneira de fazer charme e deixá-lo ainda mais envolvido. Por que motivo ela deveria desistir dele? Não se encontra um cara lindo assim a toda hora. Muito menos Milena, que já não era mais um broto, e nunca tivera vocação para freira. Ela devia estar esperando esta oportunidade há muito e não iria desperdiçá-la.
Só faltava agora escolher o parceiro para o seu teatrinho. Para fazer frente Fábio, seria preciso um homem que de fato chamasse a atenção. Alguém muito bonito e elegante. Mentalmente, Fernanda passava em revista todos os seus conhecidos e não se decidiu por nenhum. Perto de Fábio, todos pareceriam um bando de frangotes insignificantes. De repente, veio a solução: aquele português que outro dia a Gracinha tinha lhe apresentado na porta do instituto. Era de uma beleza excepcional. Como se chamava mesmo? Lembrou-se do cartão que ele tinha lhe dado aquele dia, com o telefone do bar. Correu para o telefone e fez o convite.
Machado não podia acreditar, mas era verdade. Fernanda tinha feito o convite de forma muito clara. Ele iria jantar na casa dela esta noite. Escovou com cuidado seu único terno e tentou fazer o laço da gravata parecido com o que tinha visto na televisão. Por sorte a noite não estava muito quente e seria possível suportar o terno de lã que trouxera de Portugal. O corte estava completamente fora de moda. Mas isso não tinha a menor importância. A euforia de encontrar com Fernanda era maior. Além disso, esse era o primeiro convite para um acontecimento social que recebia, desde que tinha chegado ao Brasil.
Assim que Machado entrou, Fernanda apresentou-o a todos. Não largava a mão dele e, de vez em quando, deixava que passasse o braço em sua cintura e andava abraçada a ele. Até que chegou a vez de apresentá-lo a Fábio:
- Fábio! Este é o Machadinho... o meu novo amor!
Fernanda esperava uma reação terrível, mas só conseguiu obter uma resposta protocolar e indiferente:
- Ah, é? Muito prazer...
Naquele momento, Fernanda percebeu que o estratagema não iria fazer qualquer efeito. E quando, mais tarde, Fábio chamou todos para o meio da sala e pediu a palavra, ela sentiu o chão se abrir sob seus pés.
- Eu queria que todos vocês ouvissem o que eu tenho a dizer...
Kiki já esperava por isso e puxou Renata, Paulo, Patrícia e Netinho, que ouviam música na sala ao lado. Machadinho estava quase morrendo de vergonha por Fernanda tê-lo apresentado daquele jeito e Milena sentiu um gelo na base da espinha.
- Dona Kiki Blanche, eu gostaria de pedir a mão de sua filha Milena em casamento!
Todos festejaram, batendo palmas e gritando "parabéns". Menos Fernanda e Milena. Esta esperou o rebuliço terminar para chamar Fábio num canto e dizer:
- Não dá, Fábio... Parece que você ainda não me entendeu. Não há futuro para nós dois. Eu nunca vou me casar com você.

Tudo acontecia exatamente como Machadinho havia previsto. Passados os primeiros dias, quando o Tia Joana abria as portas só para que a noite entrasse, o sucesso veio para ficar. Todas as noites havia filas de pessoas esperando por uma mesa. Vítor já começava a sonhar com os lucros e a planejar seus investimentos. Joana e os pais ajudavam na preparação da comida, e, quando necessário, se revezavam atrás do balcão para servir o chope gelado. Só duas pessoas não se deixaram contaminar pelo sucesso do bar, e essas eram justamente Lurdinha e Gracinha. É claro que Gracinha ficava satisfeita em ver os pais e os avós com novas esperanças, envolvidos no trabalho do Tia Joana. Mas a única coisa que lhe ocupava a mente era sua paixão por Machadinho. Desde a noite em que ele a beijara, Gracinha não conseguia mais parar de esperar pelo próximo momento de romance; chegava a sentir os braços imaginários de Machadinho envolvendo seu corpo frágil de menina-moça. E assim dividia seu tempo ocioso, pensando na paixão pelo rapaz e no ciúme que sentia de todas as garotas que se aproximavam dele, quando ele gentilmente as recebia no Tia Joana.
" Está certo", pensava Gracinha. "Ele precisa ser gentil com as freguesas. Mas será que também precisa ficar sorrindo para Fernanda, todas as vezes que ela vem aqui?" Com esses pensamentos, afastava a paixão e deixava-se consumir pela raiva, seu mais grave defeito e sua maior fraqueza.
Lurdinha sabia que não era tão atraente como a amiga e, por isso, teria de usar armas mais sutis na conquista de Machadinho. O primeiro passo já estava dado: terminara o namoro com Cássio, amigo de Netinho, um rapaz simples e muito delicado, a quem simplesmente dissera adeus. Agora seria apenas uma questão de planejar tudo muito bem, e partir para a conquista de Machadinho. Ele era mais velho, mais experiente, mas certamente não era mais esperto do que ela... Pelo menos, isto era o que Lurdinha acreditava ser a verdade.
Enquanto Gracinha pensava em Machado, fazia as unhas de Carla Lambrini, uma mulher bonita e milionária, assídua freqüentadora do salão de Kiki Blanche. De repente, ouviu a voz de Fernanda, e sentindo raiva e ciúme feriu a mão da cliente:
- Ai! - gritou Carla. - Você me machucou!
- Desculpe, dona Carla! Eu juro que isso não vai mais acontecer!

- Acho bom, menina. Não ia ser nada bom pra você se eu fosse me queixar pra Kiki...
"Maldita Fernanda", pensava Gracinha. "Até em pensamento. ela é capaz de me atrapalhar!" E seguiu seu trabalho com cuidado redobrado, como redobrado era agora o ódio por Fernanda, sua única rival na conquista de Machadinho. Pelo menos, era o que Gracinha julgava, já que não imaginava nem de longe que a amiga Lurdinha era sua única e verdadeira ameaça...

Patrícia não era o anjo que fingia ser. Não relutou nem mesmo por um minuto quando o pai lhe ofereceu um carro, em troca de seu afastamento de Paulo. Afinal, Paulo representava para ela pouco mais que um companheiro, um escravo de sua beleza, que poderia facilitar a saída de casa. Mas um carro seria mais eficiente que Paulo, e poderia aproximá-la ainda mais de Netinho, que no momento era seu único interesse.
Renata não era problema para Patrícia, apesar de ser a namorada de Netinho. Um rapaz como ele, dominado pela mãe, precisava de alguém mais forte, mais esperto que Renata, e isso Patrícia certamente podia oferecer. A convivência dentro de casa com a tirania do pai e a passividade da mãe havia lhe ensinado a agir com muita astúcia e inteligência. Não foram poucas as vezes que saiu pela janela, furtivamente, enquanto os pais dormiam tranqüilos. Para ela, essas fugas noturnas representavam não apenas a diversão, mas a prova de que sempre conseguiria tudo o que quisesse. Ou quase tudo...
Naquele mesmo dia, começou sua aventura. Inventou uma mentira para a professora de piano e faltou à aula. Mas pra sua mãe as aulas aconteciam todas as semanas, religiosamente. Patrícia telefonou para Paulo, simulou soluços e voz chorosa, e disse que não poderia mais vê-lo, a partir daquele dia, sob a pena de ficar ainda mais presa em sua casa.
Contornadas todas as barreiras, piano, mãe e Paulo, Patrícia saiu de casa apressadamente e foi ao encontro de Netinho no banco onde trabalhava. Faltava pouco tempo para a hora da saída. Com um pouco de sorte, poderia até sair com ele e, quem sabe, namorar um pouco na praça ou no escurinho do cinema, onde beijos muito românticos costumam acontecer.
Renata não era o tipo de menina que alguém poderia chamar de "extrovertida", mas também não era nenhum poço de timidez. Apesar de insegura e dependente, tinha seus momentos de impulsividade. Naquela tarde, achou que seria ótimo encontrar Netinho na saída do trabalho. Não havia nada de errado em buscar o namorado na saída do banco. Quem sabe ele achasse a idéia boa e até a levasse a um cinema. Havia bons filmes em cartaz, embora isso não viesse ao caso...
Netinho, como sempre, deixava-se dominar por todas as pessoas que se aproximavam dele. A começar pela mãe e também Patrícia, mulheres de personalidade muito mais forte que a sua. Por isso mesmo, achou até natural quando viu Patrícia entrando no banco, quase no fim do expediente. Netinho já estava com suas coisas prontas para sair, e, ao vê-la, acenou para Cássio e a acompanhou até a rua.
- Fiz mal em vir aqui, amor? - perguntou Patrícia, com seu falso ar de ingenuidade.
- Claro que não, Patrícia! Eu não estava esperando, mas até que foi uma boa surpresa.
- Será que... nós poderíamos dar uma voltinha, ir até a praça do chafariz, ou pegar um cinema?
Netinho pensou em seu primeiro problema: dinheiro. O que já eliminava o cinema. O passeio de carro também implicaria, gastar gasolina à toa. O melhor mesmo seria um passeio a pé pela beira da praia, que não custava nada e ainda lhe serviria para refrescar a cabeça.
Eles estavam ainda tentando decidir o que fazer, parados em frente ao banco, quando Renata os avistou de longe. De início, pensou em uma coincidência. Patrícia poderia ter conta naquele banco, e o teria encontrado. Mas a porta do banco já estava fechada, e justamente naquele dia ela havia desmanchado com Paulo.
Seria muita coincidência num dia só! Renata se escondeu atrás de um carro estacionado na rua, tomando cuidado para que não fosse vista.
Netinho e Patrícia caminharam até o carro, lado a lado, um pouco juntos demais para dois simples conhecidos...
Renata não podia acreditar no que via. Ali estava Netinho, a poucos passos de distância segurando a mão de Patrícia, apoiado no carro, e olhando-a no rosto fixamente. Com ela, ele mal trocava algumas palavras, e estava sempre convidando Cássio para sair junto, como se quisesse evitar de ficar a sós com a namorada.
Mas isso não foi tudo. Pouco depois, Renata viu a cena mais dolorosa de sua juventude: Netinho, seu namorado, seu doce e querido amado, tomava Patrícia nos braços e a beijava demoradamente, ali, na frente de todas as pessoas que passavam, sem medo nem pudor...
Ela não sabia o que fazer. Primeiro, pensou em ir correndo até lá e arrancar Patrícia de Netinho, colocando-se em seu lugar, beijando-o daquele mesmo jeito, como nunca fora beijada por ele. Mas não teria coragem de se expor, de passar ridículo na frente dela. Continuou ali, parada, vendo os dois entrando no carro, e saindo na direção oposta ao caminho de volta da casa dele.
Renata segurou-se no carro, sentindo as pernas fracas e trêmulas, e foi se arrastando para não cair no chão. Ao olhar-se no vidro da janela, viu duas grossas lágrimas lhe correndo pelo rosto pálido, cansado, farto de sofrer e de perder sempre suas mais lindas ilusões.

Não era um compromisso fixo, mas sempre que possível Netinho passava com o carro no ponto de ônibus onde Celeste o esperava, e iam juntos para casa. Ela sabia que ele costumava sair com Patrícia, ou com Renata, no fim da tarde, depois do expediente. Mesmo assim, deixava sempre o primeiro ônibus passar, o segundo, na esperança de que ele acabasse passando por lá para uma carona.
Não era tanto pelo conforto de ir para casa de automóvel, mas pela companhia dele. Celeste sempre pensava em Netinho com ternura, sentia pena do quanto ele sofria nas mãos de Margarida, e tinha prazer em ficar a seu lado. Apesar de muito mais jovem, ele já era um homem, bonito, sincero e atraente...
Depois de ver passar os três ônibus que costumava pegar, Celeste desistiu de esperar. Chegou em casa, e jogou-se no sofá, para descansar. Foi quando Margarida entrou, sem nem ao menos bater à porta.
- Onde é que está o Netinho? Ele não trouxe você de carona?
- Não, Margarida. Eu vim de ônibus. E, depois, o Netinho não tem obrigação de me trazer de carro. Nós combinamos que, se ele passar no ponto de ônibus, tudo bem, e, se não der, não faz mal...
Margarida não gostou de saber que Netinho não passara para pegar Celeste. Isso só podia significar uma coisa: ele estava com alguma garota, e talvez até mesmo com Patrícia.
- Se ele estiver com aquela tal de Patrícia, ele vai ver só do que sou capaz!
- Ah, Margarida, que coisa! Vai ver que ele só foi dar uma volta, tomar cerveja com o Cássio...
- Eu conheço muito bem o meu filho! E conheço também as meninas hoje, que só querem saber de pouca vergonha com os rapazes... Mas ela me paga! Ela vai ver com quem está se metendo! - e saiu sem dizer mais nada.
Chegando em.casa, Margarida telefonou para a casa de Kiki Blanche, perguntando por Renata, que não estava. Abriu o caderno de endereços de Netinho e ligou para Patrícia, que também não estava. Não havia dúvida. Com uma duas ele deveria estar. E, se sua intuição de mãe não lhe traísse, só poderia ser com Patrícia...
Fábio parou o carro e tentou convencer Fernanda, pela última vez, de que não queria ir ao Tia Joana com ela. Mas não adiantava. Era muito difícil conseguir contrariar aquele demônio em forma de mulher. O mais fácil mesmo era fazer o que ela queria. E depois não havia nada de mal em passar alguns bons momentos no bar, saboreando os deliciosos acepipes portugueses que Machadinho preparava tão bem.
Deixou-se levar pela teimosia de Fernanda, e entrou com ela no Tia Joana. Mal entrou, Fábio avistou Milena, de costas para ele, sentada numa mesinha ao lado de Celeste e de sua irmã Sílvia. Com sua experiência de quarentão, sabia que alguma coisa ia acabar saindo mal.
- Que azar, Fábio! A Milena está aí...
- Azar seu, Fernanda. Para mim, foi uma sorte... Assim eu posso ficar com alguém da minha idade, e que muito me interessa...
Fábio puxou uma cadeira vaga na mesa de Milena e sentou-se, sorridente. Fernanda, para não ficar sozinha, procurou a companhia de Machadinho.
Sílvia foi a primeira a expressar sua surpresa ao ver o irmão ali.
- Mas que surpresa agradável! Nada como um homem para enfeitar uma mesa com três solteironas! Celeste, este aqui é o meu irmão Fábio, de quem eu sempre falo.
Os dois se cumprimentaram sem muita cerimônia. Milena estava de cabeça baixa, tentando controlar a emoção de rever o homem amado, e não se atirar em seus braços na frente da irmã. Pensou em se levantar dali, mas Fábio foi mais rápido.
- Milena, eu gostaria de conversar com você, agora, em particular.
- Infelizmente eu sou educada demais para mandar minhas convidadas embora, Fábio! Se você quiser, conversamos aqui todos juntos.
- Milena, por favor, você sabe que não é a mesma coisa.
- Ih, Milena, que chatice! Converse um pouco com meu irmãozinho, porque ele anda muito tristonho de uns dias pra cá ... - disse Sílvia.
- Está bem. Eu vou aproveitar pra respirar um pouco de ar lá fora - e se levantou da mesa, seguida por ele.
Ao perceber que Fábio e Milena estavam juntos, Fernanda resolveu iniciar ali uma pequena cena de ciúme. Sentou-se em uma mesa onde dois rapazes tomavam cerveja sozinhos e, sem a menor cerimônia, apresentou-se e começou a conversar.
Lá fora, Fábio e Milena continuavam um misto de conversa e discussão.
- Não tem sentido, Milena! Você está jogando tudo pela janela, por causa daquela idiota da sua irmã!
- Ela não é idiota, Fábio! Idiota é quem não percebe que ela está apaixonada por você! E depois... eu acho que já não sinto mais nada por você, mesmo. Não é só por ela, é por mim.
Fábio segurou as mãos dela nas suas, com paciência e amor.
- Milena, não tente me enganar. Eu sou um homem experiente e sei diferenciar uma mulher que me ama de uma mulher que não me quer. E posso dizer que você me quer, me deseja, me ama da mesma forma que amo você...
A vontade de fraquejar dava ainda mais forças para que ela se afastasse dele. Resolveu pensar e agir como mãe de Fernanda, e disse uma única frase, antes de deixá-lo ali sozinho:
- Você pensa que todas as mulheres têm obrigação de gostar de você? Pois eu tenho o privilégio de ser a primeira a dizer que você é um grosso, um convencido. Eu não sinto nada, absolutamente nada, por você!
Sílvia e Celeste logo perceberam que alguma coisa errada estava acontecendo e, em solidariedade à amiga, pegaram suas bolsas, foram até o balcão, pagaram a conta e saíram com Milena de volta para casa.
Fábio ainda caminhou pela calçada durante algum tempo, e viu Milena saindo de lá com as duas amigas.
Não sabia por onde começar a resolver o problema. Nem ao menos podia compreender a súbita mudança no comportamento dela. Na última vez em que estiveram juntos, tudo estava perfeitamente certo, definido, maravilhoso. Nem mesmo Fernanda poderia impedir. Alguma coisa de muito estranha estava acontecendo com Milena, e isso os estava afastando.
Fernanda começou a se impacientar com a ausência de Fábio. Tinha visto o momento em que ele e a irmã saíram. Em seguida, vira Milena sair com as amigas. Por que então ele demorava tanto a retomar ao Tia Joana? Resolveu deixar os dois rapazes na mesa e correu até a calçada para tentar encontrá-lo. Mas chegou tarde demais. Tudo o que pôde ver foi o carro de Fábio dobrando a esquina, transportando seu difícil amor para longe dali.
Voltou ao bar e foi à procura de alguém que a levasse para casa. De preferência Machadinho, que era seu fã número um e, no momento, o único homem bonito que poderia reconstituir seu ego ferido.
Encostou-se no balcão e puxou Machadinho pela roupa tão logo ele passou por ela.
- Machadinho, eu estou precisando de você.
Ele hesitou em responder, porém resolveu conversar, mostrando um pouco de frieza.
- Para quê? Pra me levar outra vez a sua casa e brincar com meus sentimentos? Ou desta vez você quer que eu faça papel de noivo na frente de sua família?
- Ah, Machadinho, eu já expliquei mil vezes pra você que aquilo foi só brincadeira. Agora é sério. O Fábio me trouxe aqui, foi embora e me largou sozinha, sem dinheiro e sem carro. Será que você não poderia me acompanhar até em casa?
Ele não pôde resistir. Gostava dela. Achava-a diferente das outras mulheres, se é que se poderia chamar aquela menina com ar de criança de "uma mulher". Ela exercia grande fascínio sobre ele, o que nunca sentia quando estava com Gracinha. Apesar de terem a mesma idade, Gracinha e Fernanda eram como água e vinho. E, para seu gosto português, o vinho agradava muito mais a seu paladar...
Assim, Machadinho deixou Chico Rico tomando conta do bar e saiu com Fernanda, enquanto Gracinha, na porta da cozinha, segurava-se para não chorar, nem de amor, nem de ódio.      .
Lurdinha tinha planejado tudo muito cuidadosamente. Desta vez, ela iria conseguir a coisa que mais queria no mundo - aquele rapaz encantador, que não a deixava dormir tranqüila -, o seu querido Machadinho.
Esperou até que todos estivessem dormindo e levantou na ponta dos pés, para que Gracinha não acordasse. Desceu a escada no escuro, sentindo as paredes com as mãos, e tomando cuidado para não tropeçar nos degraus. Em tempo, chegou até o salão do bar, onde Machadinho dormia. Voltou até a cozinha e acendeu a luz do corredor. Depois de poucos passos, estava novamente ao lado do rapaz, desta vez podendo vê-lo na penumbra, respirando tranqüilamente. Nesse instante, Lurdinha fez o que já tinha preparado: foi até a geladeira, pegou um copo de leite e esbarrou propositalmente na cama dele. Com isso ele acordou, um pouco assustado, e viu Lurdinha a sua frente.
- Desculpe, eu esbarrei sem querer na cama... eu só vim pegar um copo de leite.
Machado arrumou o cabelo com a mão e sentou-se na cama, com as pernas para fora das cobertas.
- Não foi nada, Lurdinha, eu é que tenho sono leve.
Lurdinha sentou-se a seu lado, seguindo em frente com o plano, que estava funcionando muito bem, Sabia que ele não a achava muito atraente, por isso escolhera sua, camisola mais transparente e sensual, na esperança de que conseguisse chamar atenção. E, usando toda a sua capacidade de fingir, mostrou-se doce e meiga com o pobre rapaz.
- Sabe, Machadinho, eu me sinto muito só nesta casa... Todos são bons mim, mas afinal não são meus parentes nem nada. Por isso eu não consigo dormir... - e, enquanto dizia essas palavras, aproximava-se ainda mais de Machadinho, fazendo força para que seus corpos se tocassem, ainda que de leve.
Machado, que também sentia saudade de sua terra, e partilhava da mesma solidão, se deixou enternecer pelas palavras. Foi o bastante para que Lurdinha desse o bote: encostou-se nele e ofereceu-lhe a boca, fechando os olhos e enlaçando-o pelo pescoço. Diante disso, nada restava a ele senão beijá-la nos lábios, correspondendo ao abraço dela. Esse foi o maior erro e a desgraça de Machadinho. Tão logo acabou de saborear o beijo, Lurdinha começou a gritar por socorro, empurrando-o e correndo até a cozinha, tomando o cuidado de despentear os cabelos e desarrumar a camisola intacta.
Todos na casa acordaram e foram ajudar a menina. Gracinha foi a primeira a vê-la chorando e a ouvir suas falsas confissões de que Machado havia tenta­do agarrá-la. Vítor e Joana desceram em seguida e ouviram a mesma história, enquanto Chico Rico e Marcelina desciam a escada ainda sonolentos. Machado estava encostado no batente da porta da cozinha, tentando falar com Gracinha, que não lhe dava ouvidos. Por mais que ele explicasse que não tinha feito nada, ninguém lhe dava crédito. Chico Rico foi o único que lhe escutou, do começo até o fim, prestando atenção em cada detalhe da história que o moço contou. Parecia impossível que uma menina como Lurdinha fosse capaz de armar uma trama como aquela. E diante desse fato Machado ficou sendo, para toda a família, o vilão, o carrasco, e Lurdinha, a vítima ingênua, que só havia levantado para tomar um copo de leite...
A partir desse dia, o clima de amizade e afeto na casa de Vítor mudou para uma atmosfera densa e carregada. Lurdinha não podia mais sair de seu papel de mocinha violentada e fingia o tempo todo. Gracinha passou a odiar Machado e a sentir-se uma idiota por ter se apaixonado por um homem que agarrava todas as mulheres indefesas. Vítor temia que, por causa desse incidente, a sociedade pudesse ser desfeita. E sem Machadinho, o Tia Joana deixaria de existir! Somente Joana e Marcelina estavam ainda em dúvida quanto ao acontecido, já que não viam em Lurdinha a santa que Gracinha parecia ver. Chico Rico, o mais experiente de toda a família, não estava certo quanto à inocência de Machadinho, mas mesmo assim já o tinha perdoado.
Machadinho decidiu que o tempo provaria tudo, e, enquanto isso não acontecesse, desfrutaria seus dias de Brasil ao lado de Fernanda...

Renata não sabia mais no que pensar para que a imagem de Netinho se afas­tasse de sua cabeça. A noite sonhava com ele. Durante o dia, falava dele com as irmãs e as amigas. Fazia de tudo para esquecê-lo, mas quando menos esperava a lembrança do ex-namorado voltava. As pessoas com quem conversara sobre isso tinham opiniões das mais variadas. Fernanda achava que era o caso de quebrar a cara de Patrícia e agarrar de novo Netinho. Milena dizia que era preciso conversar com calma e tentar entender por que ele beijara Patrícia.
- E você, o que acha, mamãe?             .
O conselho de Kiki não poderia, é claro, conter nenhum radicalismo. Muito mais quando se tratava de um caso que envolvia a filha de Sérgio Mello ­ pela qual, aliás, o Paulo estava loucamente apaixonado. Era preciso muita prudência, mas, antes de tudo, seguir a voz do coração.
- Você ainda gosta dele, minha filha?
- Claro que sim! Não penso em outra coisa     Não consigo mais dormir, nem comer... Não tenho vontade de fazer nada             .
- É preciso que você considere a educação que o homem brasileiro recebe, Renata...
- Como assim, mamãe?
- Quando a mulher se oferece, o brasileiro precisa corresponder. Senão, ele mesmo começa a duvidar da sua masculinidade...
- Mesmo que ele a despreze como pessoa?
- Claro que sim. Ainda mais no caso de um rapaz assim tão inseguro e dominado pela mãe como é o Netinho...
- É o nosso tradicional machismo, não é, mamãe?
Aquela conversa foi definitiva para que Renata tomasse uma decisão: faria as pazes com Netinho.

Um comentário:

  1. JE, está cada vez melhor! Essa cena de Lurdinha e Machadinho foi demais! Que trio terrível: Lurdinha, Fernanda e Patrícia! Adoro lembrar essa novela tão boa! Obrigada, bjs.

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