quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O INFERNO DE UM ANJO - CAPÍTULO 10 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA




O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’unAnge


Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Capítulo X

BONITA, PORÉM, HIPÓCRITA


Depois de jantar, o conde Fernando tomou amorosamente Denise pelo braço e a levou até uma linda saleta. E, logo após o criado ter-lhes servido o café, Fernando disse:
- Você me contou que o bondoso preto Benedito foi um pai para você, mas satisfaça-me uma curiosidade: Como ele conseguiu ganhar a vida? Um escravo fugitivo dificilmente encontra quem queira protegê-lo, tem que viver ocultando-se continuamente dos caçadores de escravos fugitivos, que os tratam como se fossem feras e ainda são recompensados se, em vez de vivos, os entregam mortos aos seus donos.
- Papai, pelo que Benedito me contou, quando ele fugiu da clínica levando-me nos braços, sofreu um verdadeiro calvário. Foi perseguido, escapando milagrosamente dos seus algozes. Conseguiu chegar até o México, onde encontrou pessoas de bom coração que o socorreram. Um farmacêutico canadense, compadecido dele e da criança, que era eu, deu-nos uma pequena casa e um lugar para Benedito, na sua farmácia, que assim ganhava honestamente para o nosso sustento e para o custeio da instrução que me deu posteriormente. Realmente, vivíamos muito pobremente. Ele nunca pôde comprar-me os brinquedos com que as meninas ricas me davam inveja, nem os lindos vestidos e jóias que elas usavam.
- Coitada! - disse o conde, compadecido. - Dói-me o coração só de pensar no que você sofreu... Mas, diga-me, porque o seu protetor não continuou a chamá-la Maria "Flor de Amor"? Esse seu, nome é tão suave, tão encantador...
- Benedito, quando jovem, tivera uma filha chamada Denise. Uma linda criança, fruto de seu casamento com Niobe, uma excelente criatura que foi o único amor de sua vida. Nesse tempo, Benedito era escravo de um fazendeiro sem escrúpulos, que vendeu mulher e filha a um rico proprietário de terras, enquanto que Benedito era vendido ao doutor Démon. Pouco depois, o infeliz veio a saber que Niobe e a filhinha tinham perecido nas águas do rio Mississipi. Por isso, o bom Benedito quis que eu usasse o nome de sua filha - Denise - em vez do meu verdadeiro nome, para que tivesse a ilusão de que aquela criatura tão querida por ele, ainda continuava viva. E, realmente, ele teve para mim o amor e a abnegação de um verdadeiro pai. E é por isso que eu quero continuar usando o nome de Denise, como um tributo de carinho à memória do homem que só me fez o bem.
- Acho que você está certa, minha querida - disse o conde Fernando, reprimindo a sua contrariedade por aquele desejo da jovem. Após consultar o seu relógio de bolso, prosseguiu:
- Como o tempo passa depressa! Já são onze horas e você deve estar terrivelmente cansada. Dê-me um beijo, filhinha, e depois vá repousar, daqui a pouco eu farei o mesmo.
- Boa noite, papai! - disse imediatamente Denise, levantando-se e beijando o conde, com pressa excessiva. - Ah, ia-me esquecendo: eu disse ao cocheiro que preparasse a carruagem amanhã de manhã, porque preciso fazer umas compras. Não fica zangado, não é?
- Que ideia! Durma tranquila, eu mesmo avisarei a senhorita Flora para que lhe faça companhia. Denise não conseguiu dissimular totalmente o seu desapontamento, ao ouvir tais palavras.
- Papai por que não vamos nós dois sozinhos? Não que essa moça me seja antipática, mas... Gosto tanto de conversar com você, não queria que uma estranha ouvisse o que dissermos.
- Não tenha receio, querida, Flora é ótima criatura e não incomoda ninguém. Pelo contrário, a companhia dela será muito agradável, você verá! Parece-me já lhe ter dito que faço votos para que as duas se tornem sinceras amigas, não? Pode ir com ela a toda parte, porque Flora tem grande experiência e poderá ensinar-lhe muitas coisas úteis. E agora, boa noite! É melhor que você vá descansar - concluiu Fernando, acompanhando a mocinha até a porta dos aposentos dela.
Logo que entrou no quarto, Denise fechou a porta, dando duas voltas na chave e, abrindo o armário, dele tirou uma maleta, que carregava consigo quando chegara.
- Puxa, como é enjoado morar neste palácio! - murmurava, enquanto isto. - Esta vida calma e monótona, sempre igual, não foi feita para mim. Se não fosse a esperança de um dia ser a dona absoluta de tudo isto, iria embora, sem pensar duas vezes!
Lançou uma olhadela a um antigo e valioso relógio que estava sobre uma mesinha e continuou:
- Já são onze e meia! Se não me apresso, chegarei tarde!
Tirou rapidamente o vestido que havia posto para o jantar com o conde e envergou um longo, que tirou da mala.
"Afonso deve estar impaciente", pensava. "Oh, não vejo a hora de dançar com ele, que é um verdadeiro mestre de baile! Que desgosto ter deixado toda aquela gente alegre e despreocupada, para representar o papel de grande dama..."
Dirigiu um olhar satisfeito ao espelho, para admirar o atrevido decote do vestido, que punha em realce as suas formas provocantes.
Finalmente, abriu devagarinho a porta do aposento e, certificando-se de que não havia ninguém por perto, desceu silenciosamente a larga escadaria e atravessou correndo o grande saguão.
Quando sentiu no rosto a carícia agradável da brisa noturna, suspirou aliviada.
"É pena ter de fazer a pé o trajeto", refletiu. "Se eu pedisse um carro para esta noite ao enfadonho indivíduo que devo chamar de pai, sei lá quantas perguntas me faria!"
Sempre monologando, atravessou todo o parque e, abrindo o portão, saiu para a rua.
Com um suspiro de resignação, aconchegou melhor ao corpo o casaco de pele que havia atirado sobre o vestido de noite, e a passos curtos e apressados dirigiu-se para as luzes que brilhavam ao longe.
Era pouco mais de meia-noite, quando Denise se deteve diante de um edifício, onde estavam estacionadas muitas carruagens luxuosas.
Na fachada, via-se um letreiro: "BalTabarin".
O "BalTabarin" era a meca de toda ajuventude desregrada de Nova Orleans, que ali marcava encontro para poder embriagar-se livremente, ao som de barulhentas músicas.
Naturalmente, as moças direitas nem pensavam em frequentá-lo, mas Denise, que, como filha da marquesa Renata Duplessis se ufanava de não pertencer a tal categoria, subiu rapidamente os poucos degraus que conduziam à entrada e deixando o casaco de peles no guarda-roupa, dirigiu-se para a sala de danças, pavoneando-se no vestido demasiadamente afeito, que agora se coadunava com o ambiente.
Havia dado poucos passos quando um rapaz excentricamente vestido afastou-se do bar com um grito de júbilo e, tomando-a nos braços, beijou-a demoradamente, na frente de todos, sem que, aliás, ninguém se espantasse.
- Afonso, meu amor. - disse Denise, logo que recobrou o fôlego. - Como vai? Perdoe-me se não apareci nos últimos dias, mas estive ocupadíssima!
- Fazendo o quê? Quero saber! - disse o rapaz. - E cuidado para não mentir, ouviu? Iria arrepender-se!
- Claro, querido! - riu Denise, fazendo um gesto brejeiro, e convidando Afonso a segui-la até um camarote próximo a eles, - Mas olhe, é um segredo que eu jurei não contar a ninguém!
- Nem a mim, que sou o único homem de sua vida, há nada menos de três meses? - protestou Afonso, fazendo cara amuada. - Eu pensaria que você já não me ama!
- Está bem - disse ela, depois de alguns instantes de hesitação. - Eu lhe direi, mas jure que não contará a ninguém! A ninguém!
O rapaz colocou a mão sobre o coração com gesto melodramático.
- Denise, como pode duvidar de mim? Eu por acaso não tenho sabido guardar os seus segredos, sempre que se torna necessário? Já devia conhecer-me!
- É justamente por que o conheço. Em todo caso, primeiro vamos sentar-nos e peça algo que se beba.
- Você paga, querida?
- Pago, sim! Sei muito bem que você está sempre "duro"!
- Eh, garçom! - apressou-se a gritar Afonso. - Uma garrafa de champanha, o melhor, por favor!
Em seguida, fazendo a pequena sentar-se a seu lado, ajuntou:
- E agora, luz dos meus olhos, conte-me tudo.
- Como você já sabe - começou Denise - eu não sou filha de Berta, a dona do pensionato, e sim de uma senhora rica e aristocrática, que para impedir que no ambiente dela soubessem que ela não era nada honesta, entregou-me àquela mulher, pagando muito bem para que me criasse. Ora, quatro dias atrás, quando eu menos esperava, quem apareceu em minha casa? Uma senhora elegantíssima, que desceu de uma esplêndida carruagem que, depois de dar-me a entender que era minha mãe, comunicou-me que meu pai, um fidalgo riquíssimo, queria absolutamente que eu fosse para junto dele.
- E você, naturalmente, tratou de ir, não é assim? - interrompeu Afonso, servindo o champanha.
- Naturalmente! Pensa que sou estúpida? Um pai riquíssimo, evidentemente não é coisa que se jogue fora! E agora, para seu governo, eu estou morando num maravilhoso palácio, cercado de um jardim imenso, e dezenas de criados trabalham para mim. Todos me respeitam e me chamam "condessinha"! Que tal, Afonso?
- Que sorte tremenda você teve! E agora... Que ficou rica, não precisa mais de mim, não é?
- Que ideia! Juro que no meio de todo aquele luxo e daquelas etiquetas todas, eu só pensei em você! A vida dos fidalgos é boa, mas enjoada de morrer!
O rapaz abraçou a jovem e a beijou, apaixonadamente.
- É verdade mesmo que ainda me ama, Denise? - perguntou depois.
Ela ia responder, quando o encarregado do local, um homem alto e gordo, trajado a rigor, entrou no camarote e disse, fazendo sinal com o polegar, por trás dela:
- Eh, Afonso, tome cuidado! Em vez de ficar aqui beijocando a pequena, cuide-se, que a polícia acaba de chegar! Eu daria o fora, se fosse você.
O interpelado não deixou que o outro repetisse. Despedindo-se apressadamente da moça, desapareceu rápido, por uma pequena porta que se abria atrás do palanque da orquestra.
Também Denise, cuja consciência não estava nada tranquila, apesar de irritada com a interrupção que lhe estragava a noite, achou oportuno evitar as perguntas dos policiais e, colocando algumas cédulas sobre a mesa, saiu pelo mesmo caminho que o rapaz. Tornou a fazer rapidamente o percurso até o palácio do conde Fernando e, com precaução, abriu o postigo que dava para o jardim. Olhou prudentemente em volta e, não avistando ninguém, dirigiu-se decididamente pela alameda onde a obscuridade era ainda mais densa, por causa das altas árvores que a sombreavam.
Não se ouvia qualquer rumor. Convencida de que ninguém a vira, Denise ia passando perto do pavilhão onde Fernando a levara com Flora, para que visitasse aquela que julgava ser sua mãe, quando, repentinamente, um vulto branco se postou diante dela, surgindo de trás de uma das moitas de hortênsias. A pequena levou a mão à boca, sufocando um grito!
À luz pálida de um raio de luar que se filtrava entre os galhos das árvores, havia reconhecido o rosto de Marta, contraído numa dura expressão de cólera!
- É a louca! A louca!... - balbuciou Denise, aterrorizada.
- Eu a apanhei! Impostora!... - gritou Marta, barrando-lhe a passagem. - Agora Fernando vai saber quem é a criatura que ele tem em sua casa, pensando que é sua filha! Você não o enganará mais!...
Denise, porém, recobrando-se um pouco, e percebendo a gravidade do perigo que a ameaçava, instintivamente se lançou para a frente e, impelida pela raiva de ter sido descoberta, crispou as mãos no pescoço de Marta, travando com ela uma luta furiosa. Infelizmente, as forças da doente eram minguadas demais para competirem com as frescas energias da jovem e, um instante depois, Marta caía, desfalecida, na relva úmida de orvalho. Enquanto isto, Denise, vendo o caminho livre, havia alcançado e aberto a porta do saguão, tornando a fechá-la logo em seguida, silenciosamente.
No dia seguinte, Fernando estava olhando, distraído, os jornais da manhã, sentado em seu gabinete, quando Flora irrompeu no aposento, pálida, a tremer, sem sequer bater, como costumava fazer.
- Com licença, conde - exclamou. - Aconteceu algo gravíssimo...
- Que foi? Fale! - exortou Fernando, vendo-a tão agitada. - Espero que não seja tão grave assim...
- Mas é, infelizmente, conde! Esta noite dona Marta fugiu do pavilhão, aproveitando-se de um instante em que a enfermeira de plantão havia cochilado, e nós a encontramos esta manhã... Caída no jardim!...
Fernando se pôs de pé, de um salto, impressionadíssimo.
- Como está ela, agora? Quero vê-la!
- Há mais uma coisa! - disse Flora. - Houve alguém... Que tentou estrangulá-la!
- Que me diz?! - replicou o conde, parecendo não acreditar no que ouvia. - Marta não conhece ninguém aqui. Quem pode ter feito isto com ela? Tem certeza de que foi tentativa de estrangulamento?
- Absoluta, infelizmente! - anuiu Flora. - Fui eu mesma que a encontrei, quando dava o meu passeio matinal! Ela estava estendida, na relva e apertava no punho fechado um pedaço de pano, que sem dúvida deve ter arrancado da roupa de quem a agrediu, durante a luta...
O conde, muito pálido, estendeu a mão.
- Senhorita Flora, quero ver esse pedaço de pano! Tenho de descobrir, custe o que custar, quem tentou matar Marta! Interrogarei todos os empregados, um a um, e se foi algum deles, receberá o castigo que merece!
- Conde Fernando, eu não creio que tenha sido nenhum dos domésticos...
- Como pode dizer isto? Tem alguma suspeita?
Flora ficou incerta por um pouco, e com expressão estranha no rosto, disse, em seguida:
- Não... Prefiro não falar... Não acusar sem provas. 

2 comentários:

  1. Essa falsa condessinha é igual a mãe! E acho que vai fazer alguma maldade com Marta e com Flora também! E Fernando, vai acreditar nela, é muito fácil de ser enganado. Muito bom, Paulo! Bjs.

    ResponderExcluir
  2. Filho de peixe peixinho é. Denise é tão bandida quanto sua mãe. Agora foi capaz de bater na pobre Marta. Tomara que logo descubram quem é essa megera. Paulo, estou gostando muito.

    ResponderExcluir