quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O INFERNO DE UM ANJO - CAPÍTULO 33 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange



Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Capítulo XXXIII

A VOZ DO REMORSO

Na mansão do conde Fernando os festejos terminaram noite alta. Uma a uma, as carruagens dos convidados haviam se retirado e, por fim, Denise, Luís Paulo e o conde Fernando estavam sozinhos numa pequena sala, com Flora. Luís Paulo nada comera durante todo o dia e apenas vez por outra bebera uns goles de champanha, para dar um pouco de cor às suas feições palidíssimas.
Os esposos haviam decidido adiar a viagem de núpcias. Denise manifestara o desejo de antes de viajar, ir morar no palácio dos Rastignac durante algum tempo, a fim de tomar contato com a sua nova e suntuosa casa. Impaciente, com os olhos cintilantes pelo efeito das bebidas que havia ingerido, a jovem tomou Luís Paulo pela mão e, fitando-o com uma expressão cujo significado era inequívoco, disse:
- Querido... Vamos para o nosso lar?
Embora relutante, Luís Paulo teve de concordar.
Fernando e Flora se despediram deles emocionados.
O conde beijou ternamente Denise, que suportou suas efusões com ar visivelmente enfadado e Fernando disse, depois, apertando a mão de Luís Paulo:
- Meu filho, eu não quero fazer perguntas a você, nem reprovar tudo o que aconteceu hoje. Direi apenas uma coisa: Denise é a minha única filha e eu a amo mais do que à própria vida. Não quero que ela seja infeliz, entende?
Luís Paulo ficou alguns instantes sem saber o que responder. Depois, vendo que os olhos do bondoso conde se velavam de tristeza, respondeu:
- Sim, compreendo perfeitamente.
- E agora, meus filhos, podem ir, e sejam felizes!
Quando a carruagem que conduzia Luís Paulo e Denise avançou pela alameda iluminada pelo luar, o conde Fernando se afastou da janela de onde acompanhara a partida de ambos e, com a fronte sulcada por profunda ruga, tornou a entrar na salinha que dava para o quarto de Flora, iluminada apenas por uma lâmpada discreta, colocada num dos cantos. Flora Sardon, ainda delicada de saúde, não pudera participar da cerimônia nupcial. Não foi até a igreja e tampouco tomou parte nem se deixou ver na festa. Por isso, quando ficaram a sós, Flora quis que o conde Fernando lhe contasse com todos os detalhes, os acontecimentos festivos do dia. Flora, que naturalmente esperava vê-lo feliz, embora um pouco triste pela partida da filha, vendo-o sombrio e preocupado, perguntou espantada:
- Que há, Fernando? Não se sente bem?
- Eu?... Absolutamente!
- Não. Acho que você não está em posse de seu bom humor costumeiro... Talvez pela fadiga deixada por este dia tão agitado. Deve estar feliz, não? Que belo par eles formam não é mesmo? Parecem ter sido feitos um para o outro...
- Aí é que você se engana, minha querida - murmurou.
O belo semblante da moça se contraiu numa expressão de espanto profundo.
- Fernando... Não estou entendendo.
O conde Fernando sentou-se ao lado dela, com o rosto voltado para o fogo. Tinha o ar cansado e parecia ter envelhecido alguns anos. Estava indeciso sobre se deveria contar ou não a Flora, tudo o que acontecera.Vendo que ele não falava, a moça insistiu:
- Confie em mim, peço-lhe: você está tão sozinho...
- Não é verdade que eu esteja tão sozinho - disse a meia voz. - Tenho Marta, embora a pobrezinha com a razão transtornada não me possa entender, e depois... Tenho você.
A jovem corou levemente, mas continuou:
- Não revele, nesse caso, os segredos do seu coração, mas... Você é quem sabe se deve fazê-lo ou não, se quer se livrar do pesado fardo que o oprime. Você sabe quais são os sentimentos que lhe devoto, no entanto, parece não ter confiança em mim. É o que tudo indica...
Tocado por aquele tom de voz suave e no qual, ao mesmo tempo, havia uma direta queixa, o conde Fernando aproximou mais sua poltrona da que Flora Sardon ocupava dizendo:
- Pois bem, quero ser sincero: estou grandemente preocupado por causa de Denise e Luís Paulo...
- Preocupado? Mas... Casaram-se ainda hoje! São felizes, agora!
- Não. Não creio que o sejam. Ou, pelo menos, Luís Paulo não o é, certamente, e seu estado de espírito, como é natural, não poderá deixar de refletir-se sobre minha filha.
Flora sacudiu a cabeça, como se não pudesse crer no que ouvia.
-Por quê? Por que tudo isso?... Não era seu maior desejo desposar Denise?
- Infelizmente, não, querida...
- Não?!... Fernando, tem certeza do que está dizendo? É impossível!
- No entanto, é a cruel verdade, querida!
E o conde, percebendo que agora já dissera muito, para não continuar, explicou à Flora o que se passara, até o instante final, entre ele e a costureirinha, como viera esta até ao palacete e, por um estranho capricho do destino, havia entrado para o serviço particular de Denise. Mencionou como encontrara a modista chorando e desesperada naquela manhã, no salãozinho privado da filha, e tudo o que havia sido dito entre os dois, ele e a moça.
Flora, com a respiração ansiosa, vibrante de emoção, ouvia sem interromper. Fernando contou ainda o que ocorrera durante a celebração do ato matrimonial, quando Luís Paulo havia demorado tanto a dar o "sim" tradicional ao oficiante, mostrando-se hesitante, e a dramática cena de que fora palco o adro da igreja, quando inesperadamente se vira face a face com a mulher que trazia ainda e sempre no coração.
- E Denise? Não percebeu nada?
- Não sei, Flora, não sei. Também eu estava tão confuso, tão perturbado...
- Compreendo muito bem isso, Fernando. Deve ter sido um golpe terrível para você, que se sentia tão feliz por ver sua filha afinal realizar seu lindo sonho! Mas, aí há uma coisa que não entendo. Se Luís Paulo amava essa mocinha, por que desposou Denise?
- Este é outro fato que me atormenta a alma. Tenho refletido durante todas estas horas, mas não consigo achar senão uma explicação plausível: ele devia estar a par da dívida que o pai contraíra comigo, e talvez não tenha tido a coragem de desiludir Denise, que o ama apaixonadamente...
Os olhos de Flora se encheram de lágrimas, ao pensar na infelicidade dos jovens esposos. Se bem que ainda não estivesse em condições de formular um juízo sobre Denise, especialmente depois daquela vez em que a encontrara abraçada com Afonso, na coudelaria, mas nem por isso pensou mal dela, imaginando que aquilo não passara de uma perdoável sede de amor que ela, sem refletir, fora levada a procurar, namorando aquele miserável. Sentia agora, imensa tristeza, sabendo que Denise, como se o destino a tivesse querido punir, pelo erro cometido, estava agora condenada a viver para sempre ao lado de um homem que não a amava. E pensou também na pobre costureirinha, quando chegara ao palacete tão viva, tão inteligente e cheia de boa vontade.
Quanto devia ter sofrido a infeliz, ao encontrar-se frente a frente com o homem de seus sonhos, aquele que devia ser o objeto de todos os seus pensamentos, casado há poucos minutos com outra mulher!
- E... Com a mocinha, a costureirinha, que aconteceu? - não pôde deixar de indagar. - O que você fez, quando ela pediu para ter um último encontro com Luís Paulo, antes dele se casar?
Fernando voltou-se, deixando de encarar Flora, como se temesse o olhar da mulher amada.
- Procurei, por todos os meios, dissuadi-la - explicou. - Pensando que seu amor pelo noivo de minha filha não fosse mais que uma fantasia juvenil e temendo, ao mesmo tempo,mais do que tudo, um escândalo, fiz-lhe uma proposta, da qual, agora, me envergonho um pouco...
- Que espécie de proposta, Fernando?
- Ofereci-lhe uma grande casa de alta-costura, na cidade... Mas, ela não aceitou, e é isto o que me faz sentir vergonha. Disse que a vida sem Luís Paulo não teria nenhum significado para ela... Que podia eu fazer? Não tinha alternativa!Devia fazê-la feliz, chamar Luís Paulo para cair nos seus braços e lançar, assim, no desespero, minha própria filha, o sangue do meu sangue? Isso teria sido contrário às leis da natureza! Não é certo, Flora?
A voz da moça parecia vir de uma grande distância, estranhamente isenta de inflexões.
- Sim, Fernando... É certo... O que, no entanto, não impede que...
- Mas não vê que eu não tinha outra saída?! – interrompeu o conde Fernando, pondo-se de pé e medindo a sala à largas passadas. E então cometi o que você talvez considere um erro: prometi que faria o possível para que ela falasse com Luís Paulo, e fiz, realmente, todo o possível para isso... Mas ele estava na companhia de Denise e ela não o queria largar para coisa alguma, ainda que por minutos. Desesperado, não achei nada melhor a fazer do que ordenar ao mordomo que trancasse a costureirinha na sala onde estava e que só a abrisse a porta depois que as carruagens do cortejo já estivessem longe, a caminho da igreja. Tinha, no entanto, o coração cheio de remorso, uma voz interior me reprovava por tê-la mandado esperar... Sem haver esperança. Para fazê-la calar, preenchi um cheque e, depois de metê-lo num envelope, confiei-o a Pedro, para entregá-lo à moça... E foi tudo! Penso que ela o aceitou, pois não tive ainda tempo de saber pelo mordomo o que aconteceu.
Flora Sardon ia falar, quando Pedro apareceu. O mordomo entrou na sala empurrando um carrinho de madeira, no qual estava arrumado com cuidado um serviço de chá de porcelana chinesa.
Depois de ter servido os patrões, o velho dirigiu-se ao conde Fernando, respeitosamente:
- Senhor conde, tenho algo a comunicar-lhe.
- Pedro, será um favor se você deixar isso para amanhã. Estou muito cansado e não tenho a menor vontade de falar agora...
O fiel servidor fez um gesto de recuo, obedecendo, mas observou:
- Como o senhor quiser, senhor conde... Tratava-se apenas da costureira da condessinha...
Num segundo, a expressão fisionômica, um pouco dura, do fidalgo, transformou-se na da mais viva ansiedade.
- Não, não se vá. Espere um instante. Que tem a dizer sobre ela?
- Entreguei-lhe, antes que ela partisse, o envelope que o senhor conde me confiou. Infelizmente, porém, ela não quis aceitar o conteúdo e o restituiu a mim, dizendo que o usasse para passar tranquilamente os meus últimos anos de vida da minha velhice. Foram essas suas próprias palavras, senhor conde...
Enquanto falava, o mordomo retirava do bolso o cheque meio amarrotado.
- Não acrescentou mais nada?
Na voz do conde Fernando havia um tom amargo, doloroso.
- Chorou muito, senhor conde, e disse qualquer coisa que, no momento, não recordo bem...
O fidalgo compreendeu a reserva do seu velho servidor ao referir-se aos detalhes do desespero da desgraçada menina e foi dizendo que o dinheiro era dela, tinha o direito de dispor dele como melhor lhe aprouvesse.
- Ela o deu para você, Pedro, e assim deve ficar com ele.
-Mas, senhor conde... É uma importância muito elevada... E eu não pensava que... Seriamente...
- Ora, vamos, Pedro. Deixe-nos a sós, por favor.
Quando o estarrecido mordomo, com o cheque na mão, fechou a porta atrás de si, o conde Fernando tornou a sentar-se ao lado da convalescente que, vendo-o em tão precárias condições de espírito, pousou uma das mãos sobre seu ombro,dizendo:
- Não se aflija assim, querido, peço-lhe...
- É tremendo ser forçado a praticar ações que são contrárias à nossa própria natureza!
- Mas você deve pensar que se tratava da felicidade de sua filha.
O conde Fernando tomou entre as suas a branca mãozinha e levou-a aos lábios.
- Agradeço-lhe as bondosas palavras, Flora. Você sabe que eu não podia agir de outra maneira, mas isso não impede que o remorso me torture, não me deixa um minuto de trégua, embora eu procure lutar... Faço tudo para não pensar, mas tenho sempre diante de mim aquele rostinho de santa, aqueles cabelos louros, aqueles olhos cor do céu a cintilarem como estrelas, cheios de lágrimas... Sim, eu tinha que evitar o escândalo, era absolutamente necessário, pelo bom nome da família, mas... E ela, onde estará agora? Conseguirá conformar-se?
- O tempo é um grande remédio, Fernando!
- Nem sempre, infelizmente... Aqui mesmo, no pavilhão do jardim deste palacete, há uma pobre louca, Marta, a quem eu amei tanto e que, por minha culpa, foi reduzida àquele estado! Chama pela filha, mas não a reconhece, quando Denise lhe aparece, e está condenada a chorar por ela, para o resto da vida! Para ela, de nada tem servido o passar do tempo!...
Um soluço abafado irrompeu dos lábios do conde. Por instantes, pareceu que ia desfazer-se em pranto, mas o fidalgo se conteve com poderoso esforço de vontade, digno em tudo de um homem forte como ele.
- Eis porque me preocupo tanto com a sorte daquela menina- continuou. - Não quero ter outra vítima na consciência! Seria pavoroso! Não teria forças para suportar o peso de mais esta culpa!
Flora, impressionada, numa tentativa para acalmá-lo, exclamou:
- Mas você não tem culpa de que o destino dela seja este. Culpado é o próprio destino da mocinha!
- Talvez tenha razão, talvez esteja certa - murmurou o conde Fernando, - Ainda assim, devo procurar fazer alguma coisa por ela. Não pode ter ido muito longe, não deve ter desaparecido. Vou contratar os serviços de um detetive particular... Tenho de reencontrá-la!
- Você é um homem muito bom, Fernando!
O conde sorriu nervosamente.
- Tenho a triste convicção de que não é assim... Se isto fosse verdade, teria encontrado uma solução, teria agido de maneira diversa, em vez de abandoná-la à sua dor como uma pobre folha sacudida pelo vendaval... Não a teria insultado com o meu dinheiro!
- Mas, afinal, essa mocinha é só, não tem ninguém no mundo?
- Não. É órfã de pai e mãe. Pelo menos foi o que Denise me disse. Órfã, sozinha na sua idade! Agora, que estou com a cabeça mais calma, pensando melhor, vejo que teria podido encontrar uma solução bem diferente da que adotei. Uma vez que Denise se foi embora, poderia tê-la conservado nesta casa, cercada de tudo aquilo que nunca teve; como se fosse uma outra filha minha.
O fidalgo se calou, enquanto as últimas chamas da lareira lhe iluminavam fracamente o rosto.
Sem o saber, estivera bem perto da verdade. Que esta o havia bafejado, suave, leve como uma brisa marinha ... Depois, na sua mente já reinava a obscuridade.

2 comentários:

  1. Que ironia, Fernando está admirando a própria filha e deseja adotá-la sem saber quem é. Bem folhetinesco mesmo e o que será do romance dele com Flora. Será que terminará com ela ou Marta recuperará a memória? Vamos ver... Está muito emocionante.

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  2. Paulo, que sina de Fernando, sempre tendo que se arrepender de algo! Que infeliz, coitado! E Maria "Flor de Amor", parece que herdou a infelicidade dos pais! Que drama! Vou aguardar pra ver o que aconteceu com Maria. Muito bom. Bjs.

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