sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 9 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Segunda Parte - Capítulo IX

NAS MÃOS DO LOUCO

Quando Umberto Brancion deu por si, a primeira impressão que teve foi de estar com a cabeça leve, uma sensação de relaxamento muscular que há muito não conhecia.
Abriu os olhos, lentamente, e olhou em volta de si.
Não estava mais na fria cela do manicômio, mas num aprazível quarto todo branco do mesmo edifício, provavelmente, mas que causava uma impressão diferente. De retenção, sim, mas ao mesmo tempo de liberdade. Custou um bocado a pôr as ideias em ordem. No começo, tudo lhe parecia envolto numa espécie de névoa. Depois, lentamente, começou a recordar: a operação no cérebro, o manicômio judiciário, tudo.
- Então, estou salvo! - murmurou. - Desta escapei!
Por instantes, a alegria, a simples alegria de estar vivo lhe agitou o peito. Mas depois, esse sentimento foi ofuscado por outros pensamentos mais tristes, mais amargos e cruéis.
- Estou vivo... Vivo... A despeito dos desejos de minha mulher e de todos quantos me desejavam ver morto! Não sei o que aquele médico de meia-tigela fez com a minha cabeça, mas o fato é que me sinto bem. Estou vivo, vivo!...
Tentou virar a cabeça, mas não pôde.
Levou a mão ao rosto e viu que, excetuando os olhos, a boca, as fossas nasais, tudo estava coberto, literalmente envolvido em gazes e bandagem. Sorriu um sorriso de triunfo.
“Fez a coisa direitinho como eu mandei! Fez a operação no rosto! Não imagina o infeliz o que irá enfrentar agora!"
Permaneceu imóvel alguns segundos concentrado em si mesmo. Fazia, evidentemente, uma experiência. Mas, por mais que se concentrasse, não sentiu a menor dor na cabeça.
- Aquele sujeitinho insignificante me curou mesmo!... - balbuciou - Estou mesmo salvo! Foi preciso agitar o mundo, insultar, berrar, matar, vir parar num manicômio judiciário para ficar curado!...
Naquele mesmo instante, a porta do quarto se abriu e apareceu Lenoir acompanhado pelo diretor da casa. O professor Brancion fechou os olhos. Não queria falar com ninguém, pelo menos por enquanto. Bastava-lhe ouvir. Preferia apenas escutar...
O diretor do manicômio se aproximou do leito onde ele estava deitado e lhe tomou o pulso. Brancion sentiu quando ele encostou-lhe ao peito a extremidade do estetoscópio, enquanto, com a outra mão pegava a ficha clínica pendente da cabeceira do leito. Ao fim de um minuto, a voz do diretor se fez ouvir no aposento.
- Meus parabéns, Lenoir! Não sei como você procedeu, mas o fato é que teve êxito... Sua carreira e seu renome estão assegurados!
- Obrigado, professor. O que acha dele?
- Acho-o ótimo, sinceramente. A temperatura está normal e não manifestou até aqui nenhum sintoma de crise pós-operatória. Nunca imaginei que este homem, com a idade que tem, fosse tão resistente. Dir-se-ia que tem um motivo para viver... Que pensa você a respeito?
- Francamente, não sei, diretor...
- A propósito, por que está ele com estas bandagens no rosto? Não me parece que essas gazes todas sejam necessárias... Mas pode respirar?
A voz de Lenoir, quando respondeu, desta vez não foi tão firme nem arrogante.
- É que, enquanto operava, encontrei certa dificuldade em atingir o ponto desejado, e tive que fazer incisões na parte superior do rosto, além das da caixa craniana. Abri frontalmente, é o que quero dizer, o senhor compreende...
- Compreendo, compreendo... Bem, você, Lenoir, me explicará tudo detalhadamente depois.
- Mas é claro, professor! Farei um relatório por escrito, uma comunicação médica acerca do processo que criei e que usei neste caso.
- Assim é melhor. Teremos de enviar uma cópia também para o Centro de Estudos Médicos. Naturalmente, você será chamado a comparecer a uma das sessões, brevemente. E não o creio que, depois desse êxito, vá permanecer aqui, metido num sórdido manicômio judiciário... Confesso que subestimei sua capacidade profissional, Lenoir, e não hesito em lhe pedir desculpas e em congratular-me com você. É pena que esse homem não possa ser levado em uma viagem ao estrangeiro como prova viva do verdadeiro milagre que suas mãos operaram... Sua vida, agora, decorrerá entre as quatro paredes de uma cela, mesmo com as condições mentais recuperadas. O crime que ele praticou foi horrendo, foi muito grave, e merece, ainda que com a atenuante da moléstia, a mais severa punição!
Se os dois médicos, ao saírem do quarto, se tivessem voltado de súbito para o operado, teriam visto dois olhos semicerrados fitos neles com uma expressão de ódio e de zombaria ao mesmo tempo. Naqueles olhos, cintilava um lampejo de diabólica inteligência!
Os dias foram Passando e as condições de Umberto Brancion cada vez eram melhores.
As forças lhe voltavam como antigamente, era grande sua vontade de viver e maior ainda o cego desejo de vingar-se, de retornar ao mundo, de poder fazer os outros sofrerem o que ele havia sofrido. Se a operação do cérebro tivera inteiro, absoluto êxito, libertando-o do pesadelo daquelas tremendas dores, não pudera, no entanto, modificar sua tendência para o mal, seu desequilíbrio mental. O professor Brancion já não sofria suas terríveis dores, mas continuava sendo um louco perigoso que, por exigência da Justiça deveria mesmo passar o resto da vida na sua cela do manicômio judiciário!
O doutor Lenoir, por seu lado, nadava em satisfação. Sua alegria atingia o auge! Suas mais róseas esperanças, suas otimistas suposições se haviam tornado coisa palpável: era agora um médico célebre, que era citado como um jovem audacioso e capaz, que, por sua habilidade no manejo do bisturi, servira de exemplo e era constantemente exaltado entre os colegas de profissão.
Havia apresentado sua candidatura à direção de uma grande clínica, na cidade, e era certo que seria aceito, dado o seu renome, alardeado através das revistas médicas e em próximos congressos científicos. Todos falavam do seu grande sucesso. Embriagado com o êxito que o bafejara, o ambicioso médico não deixava, e isso passara já a ser quase um hábito, um dia sequer, de visitar o paciente que lhe servira de cobaia.
Certa manhã, ao entrar no quarto de Umberto Brancion, encontrou-o de pé, o magro corpo metido num roupão, parado diante da janela protegida com grades.
- Bom dia, professor! - disse o médico, segundo seu velho hábito. - Folgo em vê-lo de pé! O senhor está se recuperando muito mais depressa do que se esperava!
Brancion se voltou para ele e Lenoir sentiu aqueles olhos estranhos, que sempre o haviam impressionado tanto, fixos nos seus. Para disfarçar o constrangimento que o invadiu, aproximou-se de Umberto delicadamente, ergueu a bandagem que ainda lhe cobria o rosto para dar uma olhada.
- Como está minha cara? - perguntou o louco.
- Está muito bem, professor. Tão bem quanto o seu cérebro!
- Vai demorar ainda muito tempo, até que eu possa retirar esses panos todos daí? - perguntou Brancion, novamente.
- Digamos... Mais uns vinte dias, talvez. Ou talvez mais um pouco. As cicatrizes no rosto custam muito a fechar totalmente e não é bom que fiquem expostas ao ar, à poeira do ambiente... O que poderia estragar todo o trabalho feito. Confesso francamente que, ainda agora, não chego a compreender o motivo de sua impaciência.
A passos lentos, Brancion se dirigiu para a cama e nela se sentou.
- O motivo? Pois vai sabê-lo sem demora, não tenha dúvida!
Sua voz saía sufocada de dentro das bandagens e tinha uma entonação estranha.
Lenoir se virou para ele, perplexo.
- Que é que vou saber? - perguntou.
- Você pensava que eu ia sujeitar-me a me entregar ao seu bisturi, a pôr em risco a minha vida como se fosse um miserável porquinho-da-índia, uma cobaia em suas mãos de operador inexperiente, sem que nem para que, só pelos seus belos olhos? Pode ser que eu seja louco, mas não a tal ponto! Meu interesse era muito outro!
- Professor, o que está dizendo?... Não entendo!
- É engraçado, doutor Lenoir! Mas basta procurar acompanhar o meu raciocínio: o senhor queria a celebridade, as honrarias, e vai ter tudo isso, terá também, naturalmente, riqueza, e isso foi obtido com o coração leve, despreocupado, com a certeza de não correr nenhum risco, pois tudo tirou do crânio de um criminoso! É uma bela recompensa esta.
- É a mesma recompensa que conquistaram milhares de outros, antes de mim, no campo da ciência!
- Sim, não o nego. Mas acontece que o elemento principal da experiência, não teve vantagem nenhuma... Qual foi a vantagem que recebi?
- Lembre-se de que sua vida foi salva! Esquece isto! Talvez a esta hora, sem a minha intervenção, o senhor estivesse morto!
Inesperadamente, com um salto felino que o outro não pudera prever, principalmente num homem ainda convalescente, Umberto Brancion se lançou sobre o médico, agarrou-o pelos braços. E sacudiu-o violentamente.
- Imbecil! Imbecil!... - sibilou-lhe no rosto - Pensa que eu ia querer ter salva a minha vida, ia querer ser libertado das dores que me torturavam, só para poder continuar vivendo aqui dentro, recluso, entre estas grades, até o dia de minha morte? Você é um idiota, meu famoso doutor Lenoir! Enganou-se redondamente!
O médico, dominado por tremenda suspeita, libertou-se das mãos dele como pôde, deu um passo à retaguarda, disposto a abrir a porta, com a intenção de escapulir do quarto.
Mas a voz do louco teve o poder de impedir-lhe os movimentos, de detê-lo imóvel, petrificado pela surpresa e pelo terror.
- Pare aí, doutor Lenoir! Não dê mais um passo ou estará perdido! Tudo o que o senhor conseguiu com o êxito da operação irá por água abaixo, num piscar de olhos, se atravessar aquela porta!
- Que quer de mim? - murmurou Lenoir, apavorado. - Nada posso fazer pelo senhor, mais do que já fiz! Mais nada!
A risada de Brancion lhe abafou as últimas palavras.
- Ah, ah, ah!... Nada! Ao contrário, pode fazer muito! Muitíssimo!
- O senhor se engana se pensa que eu o ajudarei de qualquer modo que seja. É um louco, um criminoso e deve pagar pelo delito que praticou! Fiz o que estava ao meu alcance para chegarmos ao ponto em que estamos. Mas não quero acabar na cadeia também, como um idiota, por sua causa!
- Mas será isso o que acontecerá, Lenoir, justamente isso, se não me ouvir! Você está em minhas mãos! Posso destruí-lo, riscá-lo do mapa, lançá-lo na lama, quando bem entender! E sabe por quê?
Frederico Lenoir, com o rosto contraído, banhado de suor, numa contração espasmódica, levou a mão à cabeça.
- Basta! Basta!... - Asseverou Lenoir. - Cale-se, se não quer que eu o mate!
- Matar-me? - zombou o louco. - Talvez isso seja o que lhe aconteça, não a mim, quando eu achar oportuno... Por enquanto, porém, não quero pensar nisso, pois tenho meios de obrigá-lo a me obedecer!
O doutor Lenoir ergueu a cabeça num gesto de rebelião.
- Esquece que está preso num manicômio judiciário, que é tratado como um criminoso e assim ficará por muito tempo! - gritou. - O senhor nada pode contra mim!
- Isso é você quem diz, Lenoir, mas eu penso de modo contrário. Você mesmo foi quem colocou na minha mão a arma que o fará escravo da minha vontade, enquanto eu bem quiser. Esquece-se de que me operou abusiva e ilegalmente contra a vontade de minha mulher e que só graças à assinatura falsa, que eu nem sequer imitei, é que pôde realizar a experiência que lhe deu celebridade?
As palavras do professor Brancion saíam de seus lábios sibilantes e, uma por uma, pareciam cair sobre seu interlocutor como verdadeiros petardos.
- Que é que o senhor pretende, afinal? - perguntou Lenoir, derrotado.
- Se você não fizer exatamente o que eu disser, se não se submeter estritamente à minha vontade... Farei todos saberem, tornarei público o fato que mencionei: a sua trapaça, a sua culpa, esteja certo disso!
- Não acreditarão num louco! Não lhe darão crédito!
- É o que você pensa!
- Você não passa de um demente, um alienado, um irresponsável!
- Nada disso tem a mínima importância. Bastará que eu peça a intervenção de minha mulher e tudo estará acabado para você, meu famoso doutorzinho, tudo irá pelos ares: adeus fama, adeus celebridade, renome, glória e dinheiro! O que virá será a cadeia... Insista nessa atitude estúpida e aquilo que poderia ser um êxito formidável redundará em tremendo fracasso. Tudo o que você conseguiu até agora será esquecido e de você, um delinquente como outro qualquer, ninguém mais se ocupará, senão para condená-lo e desprezá-lo. Breve, ninguém mais se lembrará que você existiu!
Derrotado, vencido, Frederico Lenoir se deixou cair numa cadeira com as mãos abandonadas sobre os joelhos. Pensava no cruel destino que o tornava, levado pela sua grande ambição, num joguete nas mãos de um irresponsável! Que teria de aceitar aquela submissão, aquele domínio, se quisesse firmar seu renome no mundo científico, para conquistar a celebridade tão desejada!
Lentamente, com voz cavernosa, perguntou:
- Bem... Que quer o senhor que eu faça?
Os olhos deUmberto Brancion brilharam de triunfo por entre as gazes da bandagem.
- Vejo que o mocinho não é tão idiota como parecia - zombou ele. - Esperneou um pouco, mas acabou aceitando os meus conselhos, afinal!
- Não posso fazer outra coisa, não tive, realmente, muito escrúpulo e não quero pôr a perder o que já obtive com tanta dificuldade, com o risco de comprometer toda a minha carreira.
- Isso! Assim é que se fala, meu caro doutor Lenoir!
- Já o operei, mudei completamente sua fisionomia, nem mesmo sua esposa reconhecerá o seu perfil. Que mais quer?
- Mas, por Deus! É muito simples: quero que me tire daqui...
Num pulo, Frederico Lenoir se pôs de pé.
- Sair daqui? Tirá-lo daqui? Mas, é impossível!
- Ou, pelo menos, o senhor pensa que seja...
- Professor Brancion, não estamos num simples hospital, numa clínica comum qualquer, mas num manicômio judiciário para dementes criminosos, onde há grande vigilância, onde os doentes são cercados de cuidados especiais, como criminosos que são, isto é, numa autêntica prisão! Não, não pense que vai poder fugir daqui, que os guardas possam ser ludibriados. O senhor não conseguirá chegar até o portão de saída sequer!
As bandagens se agitaram sobre o rosto de Umberto Brancion, pois ele ria, ria como se tivesse ouvido uma boa anedota.
- Lenoir, você me toma por louco, e é provável que eu o seja... Mas a minha matreirice não foi afetada. Digo-lhe que sairei daqui, com a sua ajuda, e sei o que estou dizendo e não é nenhuma loucura! Eis como farei, ou melhor, como faremos...
Brancion ia começar a detalhar seu plano de fuga, quando ouviram ruídos no corredor junto da porta do quarto.
Antes, porém, que a porta fosse aberta e desse passagem a quem chegava, rápido como um relâmpago, com uma presença de espírito espantosa, ele se lançou no leito, sussurrando para Frederico Lenoir que estava estático:
- É a enfermeira com o almoço. Vá embora sem dizer nada e venha aqui esta noite, depois das dez...

Um comentário:

  1. Dr Lenoir entrou bem! E foi assim que surgiu o Dr Démon! Que história incrível! Muito bom!

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