quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 19 - PARTE 1 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Capítulo XIX – Parte 1
SEM MÁSCARA

Ubaldo Duroi mal acabava de sentar-se no seu lugar, na salinha de espera da quiromante, quando esta reapareceu, e, depois de tê-lo olhado por um instante, disse:
- Veio, naturalmente, para uma consulta...
O investigador se ergueu e, mantendo a cabeça baixa, sem fitar o rosto da mulher, respondeu:
- Sim. Eu desejo muito falar com a senhora.
- Lamento, mas, infelizmente, teremos que adiar a consulta. Estou muito fatigada e não me sinto disposta a enfrentar o esforço de outra sessão.
- Ah! Está muito fatigada...
Na voz de Ubaldo havia um forte tom de ironia e isso não escapou à quiromante, que tornou a fitá-lo persistentemente.
- Esteja ou não esteja - sibilou - o caso é que já lhe disse para ir embora. Compreendeu?
- Permite que lhe diga, senhora Delapierre, que é muito ríspida com os seus clientes?
- Bem, mas o fato é que a sua opinião não me interessa absolutamente!
- Pensa, talvez, que não lhe poderei pagar?
- Isto não tem a mínima importância!
- E, então?
Os olhos cor de esmeralda da quiromante adquiriram um brilho mais vivo, cheio de ameaça.
- Então... Trate de ir embora! Estou na minha casa e tenho o direito de agir como bem me pareça!
Ubaldo Duroi se apoiou na bengala que tinha na mão e, sem tirar os olhos da mulher, disse, com um sorriso sarcástico:
- Pois eu acho que não sairei, apesar disso, e que a madame, embora esteja assim fatigadíssima como disse, vai ter uma conversa comigo... Ou melhor, vai responder a umas perguntas que eu lhe farei! Estamos de acordo?
Sem dar resposta, sem o menor sinal de estar amedrontada, a vidente se voltou para a porta e chamou:
- Jordi!
Imediatamente, como se tivesse surgido do nada, o hindu mudo apareceu no vão da porta, com os longos braços que quase tocavam o chão, o que lhe dava certa semelhança com um gorila.
Seus olhos felinos, cujo branco contrastava fortemente com o tom da pele, fixaram-se primeiro nos da quiromante e, depois, no investigador. Como se tivesse recebido uma ordem silenciosa, mas imperiosa, mostrando os dentes alvíssimos também num sorriso que era uma careta feroz, o hindu deu um passo em direção do detetive, estendendo as grandes mãos peludas e fortes como garras.
- Agarre-o, Jordi! - ordenou Ivonne Delapierre.
Mas, naquele mesmo instante, aconteceu uma coisa imprevista, inesperada, que fez a quiromante soltar um grito de terror! Quando o hindu estava quase a alcançá-lo, o investigador, agilíssimo, retrocedeu alçando ao mesmo tempo a bengala em que esteve apoiado até aquele momento. A mão de Ubaldo premiu um botão oculto no punho do bastão-arma. Ouviu-se um estalido seco, metálico, e da ponta da bengala saiu, com um brilho ameaçador, uma lâmina cintilante e pontiaguda! O servo da vidente, a tempo, estacou, rangendo os dentes. Daquele instante de hesitação se aproveitou Ubaldo Duroi que, sempre mantendo o hindu a distância respeitosa, com a mão esquerda arrancou todo o disfarce que lhe velava a autêntica personalidade, mostrando-se aqueles quatro olhos atônitos como realmente era.
- Basta de comédia, de fingimento! - gritou. - Chegou o momento de colocar as cartas na mesa, minha cara marquesa Renata!
Por um instante, Ivonne Delapierre, ou melhor, Renata Duplessis, permaneceu incapaz de dizer palavra, tal era a surpresa que se apoderara dela. Imóvel, arquejante, fitava estarrecida o homem que a contemplava com um riso sardônico nos lábios.
- Você!... - articulou finalmente. - Você!... Não é possível! Não é verdade... É uma alucinação!...
- Como? - zombou o detetive. - A grande quiromante está a falar em alucinações? Pensei que logo me tivesse reconhecido... Ou que adivinhasse!
A marquesa Renata, como se as forças lhe fossem faltar, caíra sentada numa das poltronas de couro de leopardo, enquanto o hindu, tomado do maior estarrecimento, sem compreender a mudança de atitude da patroa, ia dando uns passinhos para trás na direção da porta.
- Saia, Jordi - ordenou a falsa cartomante, quando começou a dominar-se. - Não preciso mais de você...
O servidor, embora com visível relutância, se retirou.
- E então? Que deseja de mim? - retomou a marquesa, voltando-se para o investigador.
O sorriso de Ubaldo se fez mais insolente:
- Que bela maneira de receber-me, depois de tantos anos!
Terá você esquecido o amor eterno que me jurou?
- Amor, aquilo?! Não passou de uma loucura juvenil, nada mais que uma tolice!
Ubaldo Duroi, o mitigo aventureiro e agora detetive, ficou repentinamente sério.
- Dê-lhe o nome que quiser - disse. - Mas, se não estou enganado, daquela tolice nasceu uma criança, uma menina...
- Uma menina? Está enganado.
A voz de Ubaldo se fez dura:
- Renata, não tente fazer-se esperta comigo, pois lhe asseguro que se arrependerá! E a aviso, para seu governo, que sei tudo o que você tem feito, desde o dia em que o conde Fernando a expulsou de seu palacete.
- E, então?
- Só um detalhe me escapou: a criança. E quero saber, com exatidão, que foi feito dela!
A marquesa Renata baixou os olhos e seu rosto assumiu uma expressão de tristeza.
- Pois bem, isso corresponde a abrir novamente uma grande ferida, mas já que você insiste, devo dizer-lhe Ubaldo: nossa filha morreu.
Não havia, porém, terminado a frase e o investigador avançou sobre ela, agarrando-a por um braço.
- Isso é mentira!
- Não! É verdade! Largue-me!...
- Mais uma mentira sua, mulher miserável! Oh! Sei muito bem que sempre adora a mentira! Tantos anos se passaram e não foram suficientes para que mudasse! É sempre a mesma! Todo esse tempo decorreu e nada melhorou em você!
A marquesa, num puxão, libertou-se da mão que a subjugava.
- Cada um é senhor de acreditar no que lhe aprouver! - disse.
Como se não houvesse entendido o que ela dissera, Ubaldo se curvou para seu lado.
- Renata - falou com toda calma - talvez você não saiba que eu, graças a certas habilidades que não vem ao caso revelar aqui, consegui tornar-me investigador privado, um detetive.
Em virtude do que estou em contato direto com muitas figuras importantes da polícia...
Renata deu de ombros com ar de perfeita indiferença.
- E eu com isso? - perguntou - Por que quer que eu me impressione com isso?
- Você se importará muitíssimo, quando souber que um desses figurões, justamente, incumbiu-me de fazer averiguações sobre você e as atividades que desenvolve e me deu carta branca, plenos poderes para agir. Sabe o que isso significa?
A marquesa Renata não deu resposta, simulando continuar indiferente e desinteressada, mas uma sombra escurecera seu semblante, ainda belo.
- Significa – continuou, imperturbável, Ubaldo - que posso mandar prendê-la à hora que o desejar! Que me diz, agora? Vai falar ou prefere que eu a obrigue a fazê-lo diante dos meus... colegas da polícia? Garanto que eles já são muito menos pacientes do que eu.
Desta vez, o medo mais repentino e violento se deixou ver no rosto da marquesa Renata. Por um instante, ela fitou intensamente o homem, como para verificar se ele blefava ou se ameaçava a sério. E a fria decisão que leu nos olhos de Ubaldo Duroi teve o poder de convencê-la. Vencida, baixou a cabeça.
- O que quer saber?
- Já disse a você, há pouco! Nossa filha? Que foi feito dela?
Renata fez um gesto vago.
- Não tema, fui sempre muito boa mãe, embora possa duvidar. Sim, cuidei dela muito mais do que você, que agora assume o papel de justiceiro, de pai aflito e ansioso pela sorte da filhinha...
- Não perca tempo em comentários idiotas! - retrucou o detetive. - Onde se encontra ela agora? Onde posso encontrá-la?
- Num lugar onde você jamais conseguiria colocá-la, certamente. Eu a elevei a uma posição excepcional, proporcionando-lhe uma felicidade que você nem poderia sonhar... Ela agora é rica, bajulada, respeitada: uma baronesa!
Ubaldo Duroi não pôde conter uma exclamação, que era difícil saber se de alegria ou de surpresa.
- Como posso ter certeza de que você não mente? - perguntou arquejante. - Diz que é uma baronesa? Dê-me uma prova, dizendo o seu nome, para que eu possa verificar a verdade.
Renata, indecisa, permaneceu calada. Via-se perfeitamente que, se pudesse, mataria aquele homem, que estava quase a lhe arrebatar o segredo que ela considerara sempre como sua mais eficaz e mais preciosa vantagem, o seu melhor "trunfo".
Confusa, olhou em torno, talvez à procura do hindu Jordi, ou de um meio qualquer para neutralizar a forte influência de Ubaldo. Mas o detetive não era homem para perder tão facilmente uma vantagem que obtivera a duras penas. Aproximando-se de Renata, ameaçou:
- Se não me responder imediatamente, se não me disser o título nobiliárquico de nossa filha... levo-a para a prisão, sem perder um minuto!
Posta assim contra a parede, sem ter uma possibilidade de escapar, a marquesa Renata murmurou:
- Vejo que sou mesmo forçada a revelar o segredo que desejaria conservar para sempre trancado em meu coração... Nossa filhinha, ao se fazer moça, tornou-se uma verdadeira beldade, de uma beleza maravilhosa, talvez mais bela ainda do que eu fui na sua idade. É feliz... Mas você parece não ter piedade para com ela!
Ubaldo estourou numa gargalhada zombeteira.
- Piedade! Esta é boa! O diabo pregando quaresma... Você, que sempre foi impiedosa, cruel, que não conhece sentimento melhor que o ódio, quer falar em piedade!
A marquesa Renata mordeu o lábio inferior. Compreendia perfeitamente que nada podia contra aquele homem que estava inteiramente a par de todas as suas fraquezas, de sua astúcia, seus golpes, sua perfídia.
- Sabe perfeitamente - continuou, evitando olhar para o detetive - que apenas com a beleza não se consegue facilmente uma alta posição social. Muitas vezes até, a beleza é que atrapalha, que impede que a jovem prossiga trilhando o caminho que deveria, para obtê-la.
- Ora! Poupe-me essas idiotices! Entre no assunto!
- Agora mesmo, calma. As coisas estão neste pé: andava eu à procura de uma elevada posição social para minha filha, algo que lhe pudesse permitir usufruir tudo o que o mundo tem de belo e de bom, quando surgiu a única oportunidade, se assim se pode dizer...
- Que tipo de oportunidade, mulher? - estimulou Ubaldo, impaciente.
- Um conde muito rico procurava há anos sua única filha... E eu encontrei o modo de fazer com que ele acreditasse que Denise, nossa filha, era a filha que ele estava procurando!
O investigador empalidecera tremendamente. Uma dúvida o atingira como uma punhalada.
- Não adivinha de quem se trata? - perguntou a marquesa.
- Fernando Chanteloup!
- Justamente! Fernando Chanteloup! O austero fidalgo que teve a coragem, a ousadia de me expulsar de sua casa, do palacete onde eu até hoje deveria viver, em meio ao conforto e à riqueza! O conde Fernando, que ignora ter perto de si uma filha que não é fruto do seu amor com aquela insípida Marta Aubert, que também fiz pagar caro a afronta que me fez, procurando roubá-lo de mim!
Ubaldo Duroi sentara-se, tendo a cabeça entre as mãos.
- Sim... Agora recordo - murmurou - agora me lembro de tudo... Tudo...
A mulher sorriu, orgulhosamente.
- Pois, quem diria? Vinguei-me encontrando, ao mesmo tempo, o modo de dar à Denise uma situação invejável!
O investigador não respondeu. Com a fronte banhada de suor, refletia, procurava coordenar as recordações que afluíam em tumulto ao seu cérebro. Rememorava a época em que estivera apaixonado por Renata, passivamente submetido à sua maléfica vontade. O tempo em que tudo havia sacrificado até mesmo seu futuro de escultor de certa fama e vivia a segui-la, pronto a obedecer a todos os seus desejos, a satisfazer-lhe os mínimos caprichos.
- Está vendo, então? - continuou altivamente a marquesa. - Pensei em Denise muito mais do que você poderia ter feito, meu caro!
Mas a quiromante não havia ainda terminado a frase e eis que, repentinamente, num ímpeto violento, Ubaldo já se postava ao seu lado, levantando sobre ela a bengala da qual ainda saía a lâmina reluzente com que se defendera do hindu Jordi.
- Pare! - gritou a marquesa, num tom de voz em que tremia de medo, erguendo instintivamente a mão para se defender. - Que é isso?! Você enlouqueceu? Baixe essa arma!
- Malvada! Infame! - gritou por sua vez o detetive particular, fora de si. - Como tem a coragem de dizer que pensou na felicidade de Denise, quando há poucos minutos apenas, falando com o barão Luís Paulo, o marido de nossa filha, que você atraiu até aqui não sei com que intenção e sob que pretexto, tudo fez para meter na cabeça dele que a esposa o trai?! Que intuito infernal move você? Que tem em mente? Devo acaso abrir-lhe a cabeça com esta bengala, para ver o que há ai dentro?
Num instante, ela compreendera o que havia acontecido: Ubaldo tinha ouvido, palavra por palavra, todo o diálogo que ela mantivera com Luís Paulo. E compreendera o que ela procurava insinuar no espírito do barão a respeito de Denise! Talvez pela primeira vez em sua vida, a terrível mulher se sentiu perdida, vencida, incapaz de enfrentar o golpe do destino.
Sabia perfeitamente que aquele que estava à sua frente não era mais o homem que conhecera anos atrás, completamente dominado por sua vontade, pronto a dar a vida por ela. Via-lhe agora com um brilho sinistro e ameaçador nos olhos, como ameaçadora era também aquela mão que manejava uma lâmina que lhe poderia causar a morte. E sabia que ele era capaz de golpeá-la!
Mas o demônio, ainda dessa vez, parece que quis ajudar a marquesa Renata. Ubaldo, pouco a pouco, foi baixando a bengala de estoque. Sua cólera violenta pareceu abrandar, para dar lugar a uma fria determinação.
- Escute o que vou dizer - disse com voz rouca - e grave na memória cada uma das minhas palavras. Não sei por que motivo você tencionava perder Denise, a carne da sua carne, ou, pelo menos, assim de momento não sou capaz de imaginar um motivo plausível, como deve ser o que você tem... Provável, porém, que Denise, depois de ter alcançado tão esplêndida situação na vida, não mais queira saber da mãe indigna que o destino lhe deu. Ou, talvez, pode ser o caso de que no meio dessa estória haja algum homem.
Um grito rouco escapou dos lábios da marquesa. E Ubaldo continuou:
- De qualquer modo, repito, seja qual for o motivo que a leva a tramar a ruína de sua filha, ordeno-lhe que a deixe em paz! Ai de você se lhe suceder algo, se você continuar a tentar, por qualquer modo, perturbar sua felicidade, mesmo que essa felicidade tenha sido conquistada à custa de uma mentira! Ai, você estará completamente perdida! Não hesitarei em liquidá-la!
O investigador se calou, para respirar, cerrando os dentes e fixando na mulher os olhos injetados de sangue. Nesse justo momento, porém, Renata Duplessis, num ímpeto de rebelião, o enfrentou. Uma férrea resolução lhe alterava, endurecendo as linhas do rosto. Até um segundo antes estava pronta a suportar tudo, mas agora que Ubaldo queria intrometer-se para perturbar seus planos de vingança, sua selvageria natural se rebelava, ultrapassando e dominando as vozes da razão.
Os verdes olhos tigrinos da bela mulher irradiavam lampejos!
- Ubaldo! - gritou, com voz fremente. - Pode fazer o que quiser, eu não tenho medo de você!... Fique sabendo que, assim como elevei Denise a um nível superior ao da maior parte das outras mulheres, assim a arrancarei de lá, bruscamente, sem a menor piedade, quando bem o entender! Ela me expulsou da casa onde eu a introduzi e agora vai pagar caro essa ousadia!
- Como aconteceu isso? - interessou-se o investigador.
- Compreende muito bem, é desnecessário que eu lhe explique! E acrescento que só é capaz de valentia diante de mulheres, trate de sair daqui!
Com um movimento rápido e inesperado ela meteu a mão num bolso do vestido e de lá sacou uma pequena pistola, que agora apontava para o detetive particular...
- Vá embora daqui! - repetiu. - Desapareça, antes que eu o mate!...
No primeiro instante pareceu que Ubaldo, dominado pela cólera, ia atirar-se contra a mulher, apesar da arma ameaçadora que ela empunhava, apontada para ele. Mas a atitude de Renata era tão visivelmente decidida que ele não teve coragem.
- Está bem... Vou-me embora... - articulou, sem tirar os olhos do cano brilhante da arma. - Minha permanência aqui já não tem mais sentido, uma vez que você prefere a luta...
Aproximou-se da porta, mas, antes de transpô-la, disse ainda:
- Fique sabendo que, de agora em diante, você contará com mais um inimigo, e implacável, que não lhe dará trégua, cuja lembrança envenenará cada minuto de sua vida!
- Rua! Vamos! Ou eu disparo! - intimou Renata, sempre de arma apontada para ele. - Já não suporto mais olhar para você!
- Estou indo, mas não cante vitória!... Veremos, dos dois, quem é o mais forte!

Um comentário:

  1. Paulo, gostei muito desse encontro entre Renata e Ubaldo! Quem diria, ele é o pai de Denise, que sortuda, sempre se dá bem! Mas, sinto que a situação de Maria, vai piorar agora, coitada! Vou aguardar os próximos lances. Muito bom! Bjs.

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