quinta-feira, 4 de julho de 2013

SESSÃO LEITURA - BRINQUEDOS INCENDIADOS - CECÍLIA MEIRELES

A crônica que reproduzimos abaixo é da autoria de Cecília Meireles.
Para maiores informações sobre a autora, favor acessar: http://www.releituras.com/cmeireles_bio.asp.
Boa leitura!

BRINQUEDOS INCENDIADOS

Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de tanto mirá-los nos mostruários – uns, pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! Maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! Pianos cujos sons cheiravam a metal e verniz! Carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! Piões zumbidores! – e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia – filhotes que éramos, então, de M. Jordain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo.
Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente alguns bonequinhos de celulóide, modesto cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidade de navegação... – pois aquelas admiráveis bonecas de seda e filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos.
Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção do valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens e deixar cravadas nelas, como setas, os nossos olhos.
Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonhos apenas da infância, amor platônico.
O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas.
Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? , pensavam as crianças. Tinha morrido o mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados.
E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos distantes!

Fonte:  http://www.fotolog.com.br/guadama787/35266071/.

17 comentários:

  1. Linda crônica, que lembro de ter lido no meu tempo de escola, o que deixou minha turma emocionada. Linda como tudo o que Cecília Meireles escreveu!

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  2. qual o fato inusitado dessa crônica ?
    e o
    foco narrativo ?

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    1. O fato inusitado ou inesperado, na minha opinião, foi o incêndio da loja de brinquedos.
      Já o foco é de primeira pessoa.

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    2. Também li este texto na escola quando criança. Nunca pude esquecer esta leitura, pois me emocionou muito e por incrível que pareça aind hoje me emociona.

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  3. Cecília Meireles consegue cativar o mundo infantil como poucas(os) autores. Sempre que leio alguma de suas obras fico, pensando: ela deve ter sido uma pessoa encantadora.

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  4. Essa crônica é Lírica/Poética?

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  5. Linda crônica. Faz voltar à infância, emociona...

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  6. Que reflequixao a cronica transmite

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  7. Que fato do cotidiano essa crônica explora?

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